Com o aumento vertiginoso da poluição visual, dos artifícios coloridos, propagandas, GIFs e textões no facebook, tenho voltado cada vez mais para o twitter, o bom e velho refúgio dos colegas de escola, tias distantes e convites para eventos em outras cidades de pessoas que você nunca ouviu falar. [UPDATE: infelizmente, em 2022 o twitter é tudo menos um refúgio — tornou-se mais uma porta para o inferno, com discussões intermináveis, extremismos de toda espécie, ataques coordenados e desinformação.] Mesmo tendo se modernizado ao longo do tempo, com carregamento automático de imagens, posts patrocinados e outras bobagens, o forte do site ainda é o texto, e a sua principal vantagem o limite de 140 caracteres. É preciso exercitar o poder de síntese para se passar qualquer ideia nesse espaço, mesmo que o recurso de threads (replies para si mesmo, para prolongar/continuar um assunto) tenha aparecido para suprir a falta de textos mais longos, ou que chamadas com links para páginas externas seja comum.
A simplicidade da ferramenta fez surgir uma série de contas dedicadas a explorar suas limitações, para efeitos contemplativos ou, na maioria dos casos, humorísticos. Grande parte delas, operadas por bots programados para postar conteúdo a intervalos regulares. Ouso dizer que se trata de uma pequena forma de expressão artística, empregar uma arroba para uma função tão específica quanto inútil, como o clássico everyword, por exemplo, dedicado a listar todas as palavras da língua inglesa — prontamente seguido por sua contraparte anárquica fuckeveryword. Em todas as grandes redes sociais existem contas duvidosas programadas para seguir automaticamente o maior número de pessoas, curtir e comentar em conteúdo alheio, mas algumas das contas mais brilhantes no twitter, por exemplo, são atualizadas por robôs desse tipo, como as ótimas autoflaneur, magicrealismbot, foleyartists e muitas outras, criadas com o único propósito de alimentar um feed com estruturas prontas repletas de variáveis pré-determinadas.
Explorando o perfil de alguma delas, não me lembro qual, cheguei ao Cheap Bots Done Quick!, onde se pode criar o seu próprio robozinho em Tracery, um código fácil de aprender, voltado especificamente para experimentos gramaticais, desenvolvido pela programadora Kate Compton. Com uma rápida lida no tutorial disponibilizado na página, é possível começar a brincar com as frases e variações aleatórias e programá-las para postagens a intervalos regulares no twitter. Acabei criando três experimentos humorísticos:
Ainda estou me divertindo com os resultados, mesmo que já saiba quais as palavras reservadas para aparecer entre as possíveis variações de frases. É engraçado notar como o mecanismo do humor (ou de qualquer linguagem, mas especialmente em gêneros específicos) geralmente funciona de forma semelhante: cria-se uma estrutura básica e apenas mudam as variáveis. A graça vem quando um termo inesperado aparece em determinados pontos.
Pensando um pouco sobre o porque de essa brincadeira ter me atraído tanto — passei uns três dias completamente obcecado por isso — , lembrei de outros projetos em que já havia empregado uma lógica semelhante. Na abertura do meu livrinho a importante das palavras ordem ainda é, de 2013, um poema traz esse tipo de estrutura aberta a possibilidades, mas em forma de questão de múltipla escolha:
EXERCÍCIO DE VIAGEM
Sentar-se num(a)
( ) bar
( ) padaria
( ) calçada
( ) praça
( ) escadade frente para
( ) a rua
( ) as montanhas
( ) o mar
( ) o jardim
( ) a cidadepedir um(a)
( ) cerveja
( ) drinque
( ) café
( ) cháe observar o tempo passar.
(É opcional acender um cigarro)
Enquanto ainda estava envolvido com a Beleléu, criei alguns outros jogos do tipo que renderam publicações como o Tension de la Passion (um texto romântico ambíguo com interpretações variadas de diversos artistas), o dominó em quadrinhos (em que uma tira se desdobrava em outras, seguindo a disposição de um dominó, mas respeitando o sentido de leitura) e o calendário perpétuo Pindura (dividido em blocos de dias da semana, do mês e os próprios meses, em que cada data forma uma tira diferente), além de outros que não chegamos a concretizar.
Quando se fala nesse tipo de experimento, não se pode deixar de mencionar o OuLiPo (oficinas de literatura potencial, depois estendidas para a música, os quadrinhos e outras áreas), que estabelece regras ou restrições para guiar a criação literária, ou mesmo os cut-ups e poemas aleatórios dos dadaístas a William Burroughs. A prática da restrição formal como meio de estimular a criatividade e forçar alternativas também era defendida por Igor Stravinsky, por exemplo, um dos maiores compositores do século 20, mesmo antes de embarcar no dodecafonismo — talvez a mais drástica delas.
No campo da música, o sempre inovador Brian Eno lançou, no fim de 2016, um disco de música ambiente que pode ser gerado individualmente em combinações exclusivas para cada ouvinte, criado por algoritmos, (ainda tenho um projeto futuro relacionado a isso, mas de execução mais simples) e o genial David Bowie famosamente tinha desenvolvido um software que compunha letras para suas músicas. Alguns anos atrás, circulou pela internet um gerador de letras faustofawcettianas que era hilário, e outros exemplos desse tipo de interação com programas de computador não faltam. É um processo mais antigo, de fato, o emprego do acaso na criação artística, ou até em outras áreas como a adivinhação, o esoterismo ou mesmo a psicologia. Uma leitura de tarô, um biscoito da sorte ou o I-ching, todos se utilizam da randomia para gerar alguma conexão significativa com o intérprete. A própria tentativa de interpretação de sonhos pela psicanálise deixa claro que o nosso inconsciente cria certas narrativas com base em elementos e imagens psíquicas pré-definidos. Grande parte dos jogos de azar depende exclusivamente de probabilidades e do acaso para gerar algum resultado, como a roleta (há controvérsias), o caça-níqueis (há controvérsias) ou os dados, embora a banca sempre leve no final.
A análise combinatória já influencia o tipo de notícias e anúncios que são exibidos para você, as sugestões de amizade em redes sociais e o alcance das suas publicações sobre política. É provável, também, que continuem sendo cada vez mais utilizadas no campo da literatura e das artes, e de formas imperceptíveis. Talvez você não tenha notado, mas este próprio texto foi escrito por um robô.
[UPDATE]
Lista atualizada dos meus bots:
cozinhabot, resenhabot, ntflxgenerator, instantmap, oanimalhumano, osalgoritmos, cientistas_bot, ooclists, virafebre.
Mais recursos e documentações sobre o assunto no BotWiki (em inglês).