“O artista é um domesticador de intervalos.”
— Wlademir Dias-Pino
DESMEMBRANDO PALAVRAS
Por volta de março de 2022 comecei a perseguir uma ideiazinha que bateu à porta, sem mais nem menos, e não me deu mais sossego. Enquanto editava o livro Passeata contra o algoritmo elétrico, me ocorreu que seria interessante brincar com um tipo de poema “desmontável”, como já fora feito muito antes pela poesia concreta, mas com uma lógica interna pré-definida e reproduzível, onde cada palavra puxasse a seguinte por meio de suas repetições— numa espécie de germe dentro do germe, jogo e processo curioso de desdobramento infinito.
INVESTIGAÇÃO
Inicialmente, bolei um tipo de esquema explodido em que se pudesse ler em diversas direções, cheio de cruzamentos atravessamentos e saltos, mas que precisava ainda ser sintetizado em uma forma mais simples e direta. Maturando separações silábicas inspiradas nos diagramas de Venn, onde as palavras compartilhariam seus conjuntos em comum por meio das bordas delimitadas, foi se definindo a chave de escrita.
Em um terceiro momento, resolvi transpor o exercício para as planilhas frias do Excel, onde a coisa tomou a sua forma definitiva e pôde se transformar em livro. O trabalho envolveu páginas e páginas de tabelas fragmentadas, tentativa e erro, e uma ajudinha crucial do site palavras.net para aguçar a minha combalida memória. Cof, cof.
O LIVRO
Para a edição impressa, foi preciso cortar e cortar, tentando deixar apenas o essencial dos poemas mais bem construídos ou interessantes. Cheguei a pensar em publicar lâminas soltas e encorpadas, para valorizar cada texto em separado, ou contar com o acabamento de uma encadernação com espiral, pelo mesmo motivo — mas seriam complicações desnecessárias e custosas. O requinte fica por conta da cor. A ideia sempre foi imprimir o livro no espaço em branco, negativo, como um projeto em blueprint (ou cianotipo) de construções mirabolantes e planos infalíveis. Uma forma de enxergar o raio-x do objeto-poema.
Outra limitação auto-imposta para o projeto gráfico foi a encadernação de revista (grampo canoa, ou jacaré, para obter a abertura total das folhas), que delimitava o número máximo possível de páginas em míseras 76 — por isso a publicação já começa na primeira página do miolo, sem folha de rosto, introdução, prefácio ou epígrafe, o que tentei mitigar com a adição de um texto explicativo (e um tanto cômico, recheado de terminologia nonsense) ao final do volume, o qual reproduzimos na íntegra a seguir.
NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DESTE LIVRO
Os poemas visuais reunidos neste volume foram criados a partir de exercícios de restrição, e baseados na estrutura rígida das planilhas (na verdade, gostamos de pensar neles como cortes transversais de edifícios). O experimento compreendeu certas regras pré-definidas: [1] A leitura deveria seguir o sentido tradicional, da esquerda para a direita, mas guiada pelas PAREDES (isto é: as partes precisam estar fisicamente conectadas pelas arestas laterais, não consideramos os vértices como ligação entre as células). [2] A separação silábica, embora costumeira, é opcional. Por vezes preferimos fragmentar as palavras a partir de outras repetições internas. [3] Os diagramas podem se desdobrar em duas ou mais bifurcações, tendo como formas básicas para isso as seguintes:
No primeiro caso, ambas as partes iniciais têm a mesma terminação; no segundo, uma parte em comum pode ter múltiplos finais — é o que chamaremos de ESCADA ou ELEVADOR. Observe, no exemplo a seguir, que as sílabas ba e sa não estão conectadas, permitindo apenas a leitura das palavras casa, carro e barro.
[4] Para fins de praticidade, optamos por geralmente ignorar a leitura no sentido vertical, por mais que no exemplo acima também possamos encontrar a palavra sarro na segunda coluna. Incentivamos, no entanto, que você busque combinações alternativas como essa — ou até outras mais ousadas — , mesmo que elas nem sempre tenham sido criadas intencionalmente. Quem lê também constrói!
O trajeto básico de leitura dos poemas, portanto, dá-se como nas seguintes possibilidades hipotéticas, e nas seguintes ordens:
É bom lembrar que, na prática, nem sempre todas as linhas estarão alinhadas com as colunas. Em muitos casos, elas terão larguras diferentes. Mesmo assim, os parâmetros de leitura permanecem os mesmos. [5] Apesar de, eventualmente, conseguirmos elencar um longo conjunto de palavras — Saussure já dizia que “uma palavra qualquer pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de uma maneira ou de outra” — , deve prevalecer como critério final o efeito narrativo/imagético causado pela soma e sequência delas, isto é: tão importante quanto listar dezenas de termos semelhantes é saber quais deixar de fora. Trata-se, antes de tudo, de uma busca por construções que não apenas atendam aos critérios formais propostos, mas que sugiram sentidos e interpretações igualmente interessantes. [6] Tentamos manter como meta o limite de até três (e não mais do que quatro) letras por célula.
FORMATOS COMUNS
Algumas estruturas recorrentes podem ser observadas ao longo deste livro. Catalogamos, a seguir, os principais desses formatos-base em utilização:
Apesar da variedade de formas, partimos sempre das palavras, e não o contrário.
TRUQUES E TÉCNICAS AVANÇADAS
As más línguas dirão tratar-se de trapaça, mas a verdade é que as seguintes malandragens e soluções mostraram-se tão úteis que foram definitivamente incorporadas ao nosso vocabulário — porém utilizadas com moderação, vale ressaltar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, poderíamos classificar objetivamente todos os resultados obtidos, com base em quanto cada um deles obedece às regras apresentadas — uns acabam ficando tecnicamente mais satisfatórios ou sofisticados do que os outros — , mas isso já seria perder de vista o propósito fundamental da poesia. Boa leitura! ■
ONDE ENCONTRAR
O livro, com tiragem de 300 exemplares, está à venda aqui.
TARDE DEMAIS
Penso que uma futura reedição desse projeto até poderia ser impressa em preto no branco, talvez utilizando (roubando) a ideia do livro-objeto A Ave, de Wlademir Dias-Pino (referência fundamental, junto com os concretistas), em que a transparência do papel age como mais uma camada na chave de leitura do texto — neste caso, libertando as palavras do confinamento das tabelas, e até acrescentando a linha-guia do “vôo” da ave no poema/processo (aqui como ramificações). Diferente dessa escola, no entanto, o Poemógrafo nasce na palavra e na abstração, precisa delas, mas traz o esqueleto da construção do poema à mostra, para que as vejamos sob outros ângulos.